sexta-feira, 22 de maio de 2009

Olhares sobre os mitos

1. Aspectos gerais do mito


Daniel Conte


O anseio de respostas para questões cruciais da existência fez do Homem um ser em eterna diáspora subjetiva, sempre inconstante e em busca de uma explicação para sua origem. Uma das características do surgimento dos mitos, exercedores de funções práticas na ossatura social, é justificar tudo aquilo que não se pode racionalmente relacionar a fenômenos lógico-racionais. Então, o que foge à razão encontra nos rituais - (cerimônias) fundantes - um signo arquetípico que vai edificar as imagens gestadas desde o imaginário social. Essas imagens exemplares trazem os modelos comportamentais como sendo já uma herança cultural. E entenda-se, aqui, arquétipos por “certos esquemas estruturais, pressupostos estruturais de imagens (que existem no âmbito do inconsciente coletivo e que, possivelmente, são herdados biologicamente) enquanto expressão concentrada de energia psíquica, atualizada em objeto” (MELETÍNSKI, 2002, p. 20). Assim, ao evocar a presença desses arquétipos sacros, o Homem se torna contemporâneo deles, apropriando-se dos modelos trazidos.Se hoje a ciência e a tecnologia movem a humanidade e com suas associações se busca a explicação para as mais comuns das ocorrências mundanas, é possível dizer que a mitologia dos povos arcaicos os levou a sustentar-se em uma realidade que muitas vezes se apresentava de forma hostil. O certo é que urge a explicação do mundo e de suas manifestações e que, a reboque, vêm as possibilidades trazidas pela rede imaginária, pelo substrato simbólico regedor das referências, tudo se condensa na síntese dos valores sociais retratados. A visão de um mundo pré-lógico, pré-racionalista, a visão de uma organização social que vive sob a égide do tempo cíclico se ergue, sempre, alicerçada num silêncio construtor, como plasticamente escreve Juan Rulfo (1999), num movimento de sentido que é perfeitamente perpassado por aqueles iniciados ritualisticamente. Todo mito é “introduzido”, e alguns teóricos tratam como “anunciado”, por uma récita que evidencia as possibilidades de movimento de sentido a que nos referimos, isso porque nas sociedades autóctones erguidas sobre uma condição mítico-sacral, o mito tem um papel enaltecedor e codificador das crenças, salvaguardando os princípios morais enquanto oferece as regras para a orientação dos atores sociais. Consoante ao exercício desse papel, pode explicar a condição de um ser que co-existe naquele universo, e usá-lo como exemplo concreto, ditar seus valores morais ao mostrar as conseqüências, por exemplo, da ambição, do egoísmo, das práticas profanas, etc. Estamos, então, legitimando através do conhecimento empírico, a razão da ordem natural das coisas que constituem a trajetória destas organizações, dentro de seu entorno imaginário. E ao referirmo-nos a mitos, não estamos, seguramente, nos referindo a escalas de superioridade ou inferioridade hierárquicas, mas a necessidades que surgem do embate da vida do Homem com a História, a problemas e questionamentos sociais que são abarcados miticamente.O mito, esse “nada que é tudo”, como afirmou o poeta Fernando Pessoa, trabalha com o desconhecido, trata um objeto que a princípio não temos palavras para explicá-lo, então, habitamos sua significação sacra e o tornamos sacro em oposição a um outro-algo (o profano) que será sua sombra, fruto da tansgressão. De acordo com Armstrong (2005) a “mitologia em geral é inseparável do ritual. Muitos mitos não fazem sentido separados de uma representação litúrgica que lhes dá vida, sendo incompreensíveis num cenário profano” (p. 09). O que a autora quer dizer é que os mitos perdem sua função elementar se desconjugados do cerimonial que os eleva à condição de arquétipo modelar, aceito no coletivo social. A função pragmática do mito consiste na fundamentação da cooperação entre natureza e sociedade, normatizando funcionalmente essa mesma sociedade, transformando o caos em cosmos e explicando, consequentemente, a ordem social e cósmica (ELIADE, 1992).Antes de nos referimos à função simbólico-metafórica do mito, é bom deixar evidente que ele traz em sua essência duas características fundantes: uma é o silêncio dos inapropriados, pois a palavra que detém a constituição sígnica não pode ser vulgarizada, segundo Cassirer (1972). A outra, é sua eficácia que vai atribuir ao mito o valor de verdade, uma visão outra, mais profunda do que a apresentada na realidade, como ensina Eliade (1994). A “modernidade” composta pelos remanescentes do iluminismo europeu ignora, generalizando a afirmação, o alicerçe sustentador dessas sistematizações iniciais de psicologia, pois não leva em conta queAs histórias de deuses e heróis que descem às profundezas da terra, lutando contra monstros e atravessando labirintos, trouxeram à luz os mecanismos misteriosos da psique, mostrando às pessoas como lidar com suas crises íntimas. Quando Freud e Jung iniciaram a moderna investigação da alma, voltaram-se instintivamente para a mitologia clássica para explicar suas teorias, dando uma nova interpretação a velhos mitos (ARMSTRONG, 2005, p. 15).O que se pode dizer é que os Homens criaram mitos para explicar o mundo e a si próprios, os rituais e as récitas vão sustentar suas afirmações e a palavra toma uma importância singular na liturgia mítica, uma vez que dá vida aos arquétipos – herança psíquica e cultural que dá origem aos nossos valores morais. Essa característica, a da palavra habitada de sentido que se eleva soberana e significativa entre os homens - importantíssima dentro das culturas arcaicas - é totalmente avassalada pela verborragia inestancável semeada pela aridez significadora da não apropriação ritual, negando o poder transformacional do signo do qual vai falar Cassirer, 1972. Assim, ao se pensar em mito, logo temos que nos reportar ao rito, elemento fundamental na sustentação da imagem mítica. Ao se pensar em mito, logo temos de entendê-lo como um ingrediente fundamental da civilização humana.Referências BibliográficasARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. São Paulo: Cultrix, 1997.ARMSTRONG, K. Breve história do mito. São Paulo: Cia das Letras, 2005.CARPENTIER, A. El reino de este mundo. Buenos Aires: Alfaguara, 1994.ELIADE, M. Mito do eterno retorno. São Paulo: Mercuryo, 1992.______. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1994.CASSIRER, E. O mito do Estado. Lisboa: Europa-América, 1961.______. Linguagem e mito. São Paulo: Perspectiva, 1972.RULFO, J. Pedro Páramo. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

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