terça-feira, 26 de maio de 2009

Histórias extraordinárias

Gabriela Hoffmann Lopes


A emoção mais forte e mais antiga do homem é o medo, e a espécie mais forte e mais antiga é o medo do desconhecido.

H.P. Lovecraft
Histórias extraordinárias, que envolvem mistérios, acontecimentos sobrenaturais ou simplesmente inexplicáveis têm atraído um grande número de leitores, o que se pode verificar em uma rápida consulta a listas de livros mais vendidos ou a catálogos de editoras com os últimos lançamentos. Uma busca mais cuidadosa revela a existência de uma vasta produção literária com essa proposta, tanto em obras voltadas a crianças e jovens quanto em obras voltadas a adultos. É possível notar ainda que a temática do sobrenatural faz-se presente não só na literatura, mas na televisão e no cinema e há muito acompanha o homem por meio de relatos, transmitidos oralmente. A tentativa de discutir o tema, portanto, mostra-se importante e oportuna no âmbito dos estudos literários, visto que o gênero é considerado um dos mais apreciados por crianças e jovens. Não se pretende aqui, contudo, investigar o porquê dessa preferência, mas sim apresentar um apanhado de estudos acerca de narrativas sobrenaturais ou fantásticas. As razões da preferência de crianças e jovens (e, poder-se-ia dizer, de alguns adultos) por tais histórias poderão ser investigadas por outras áreas de conhecimento.
É impossível falar em histórias extraordinárias sem lembrar a importância da narrativa para o desenvolvimento do homem e sem mencionar o papel da oralidade em sua transmissão. A narrativa ocupa, pois, há muito tempo um espaço significativo na cultura humana. Em variados povos, em diferentes países, o gosto por contar histórias tem-se mostrado presente e é muito anterior à invenção da escrita. Desde os primórdios, a imaginação do homem valeu-se da narração para explicar a origem e a natureza das coisas, para transmitir um ensinamento salutar ou para divertir, simplesmente. Esse “relato de eventos”, ou “articulação de ações”, – definições pelas quais Marisa Lajolo compreende a narrativa (2005, p.5) – teve suas primeiras manifestações literárias por meio da oralidade e também por essa via é que foram inicialmente transmitidas. Mesmo sendo impossível precisar com exatidão os primórdios do ato de contar histórias, pressupõe-se um tempo remoto, não marcado pela tradição escrita.
Em busca da origem da narrativa, Nádia Batella Gotlib (1999) remete a 4000 anos antes de Cristo, época em que aparece a primeira coletânea de contos egípcios, chamada Os contos dos mágicos. Em seguida, ela cita as histórias bíblicas e os textos literários greco-latinos, bem como os contos orientais presentes em Pantchtantra, que data do século VI a.C., e em As mil e uma noites, do século X. Segundo a pesquisadora, enumerar as fases da evolução da narrativa seria, portanto, “percorrer a nossa própria história, a história de nossa cultura, detectando os momentos da escrita que a representam” (GOTLIB, 1999, p.6). As fontes da narrativa, bem como sua perpetuação, revelam, portanto, o antigo e estreito vínculo entre literatura e oralidade. Nos dias de hoje, esse vínculo parece por vezes esquecido, visto que o advento e o posterior domínio da forma escrita acabaram por tomar o lugar até então ocupado pela literatura oral na transmissão de saberes e no entretenimento dos homens.
A afirmação feita por Lovecraft, presente na abertura deste texto, além de incontestável, confirma a impossibilidade de localizar, na história humana, a data exata das primeiras manifestações literárias orais de histórias extraordinárias. Para o escritor e amante do sobrenatural Lovecraft, “o conto de horror é tão velho quanto o pensamento e a linguagem do homem” (1987, p.7) e sua sobrevivência, evolução e aperfeiçoamento ao longo do tempo justifica-se por ser o medo a mais antiga e profunda emoção humana. O medo do desconhecido pode ser encontrado nas mais antigas manifestações folclóricas; seus traços, contudo, são reconhecíveis ainda hoje na literatura clássica.
Na Idade Média, o gênero teve um enorme impulso, solidificado pela herança do folclore, da magia e do ocultismo. Foi assim que histórias de bruxas, vampiros, lobisomens e duendes ficaram incubadas na tradição oral até migrarem para a composição literária formal. No entanto, acrescenta o autor, tomam direções diferentes no Oriente e no Ocidente. A Europa apresentava outrora um solo fértil para o desenvolvimento de tipos e personagens sombrios de lendas e mitos, que persistiram na literatura de mistério até a atualidade, mais ou menos alterados. “Muitos deles foram tirados das mais remotas fontes orais, e são parte da herança permanente da humanidade” (LOVECRAFT, 1987, p.9). Alguns dos temas citados pelo estudioso são a sombra que reclama o sepultamento de seus ossos, o demônio apaixonado que rapta a noiva ainda viva, o condutor das almas dos mortos, o homem-lobo e o mágico imortal são recorrentes em um repertório de lendas medievais, compilado por Baring-Gould.
Os exemplos mais antigos apontados por Lovecraft são o caso do lobisomem, de Petrônio, as passagens de Apuleio, a carta “O moço e a sura”, de Plínio, e a compilação Dos prodígios, do grego Flégon. Os exemplos continuam em textos poéticos como os Edas e as Sagas da Escandinávia, em que ressoa o horror cósmico, ou nas lendas dos Nibelungos, em que abundam monstruosidades. Dante foi, segundo o autor, “um pioneiro na captura clássica da atmosfera macabra” (1987, p.10). Também se encontra o horror nas situações horripilantes de Morte d’Arthur, de Malory, nas bruxas de Macbeth e no fantasma de Hamlet, de Shakespeare. Segundo Lovecraft, o apogeu do romance gótico inicia-se com Matthew Gregory Lewis, por meio da obra O monge, publicada em 1796. A partir de então, romances góticos multiplicam-se; merecendo alguns mais atenção do que outros: é o caso de Melmoth, o vagabundo, de Charles Robert Maturin, de Frankenstein ou o Prometeu moderno, de Mary Shelley, ou de Morro dos ventos uivantes, de Emily Bronte, que é símbolo de uma transição literária, pois marca uma escola nova e mais saudável.
No continente europeu, o horror literário também prosperou; vejam-se, por exemplo, os romances e contos de E. T. A. Hoffmann, na Alemanha, ou as incursões em narrativas fantásticas de Victor Hugo e de Honoré de Balzac, na França. No entanto, para Lovecraft, é Theophile Gautier quem parece, em seus contos, “encontrar o autêntico senso francês do mundo irreal” (LOVECRAFT, 1987, p.42), sua essência encontra continuidade em Gustave Flaubert e em Prosper Merimée, com o conto “A Vênus de Ille”; os contos de horror de Guy de Maupassant, mesmo que expressem individualidades próprias do autor, “são de extremo interesse e pungência, sugerindo com tremenda força a iminência de inomináveis terrores e os implacáveis tormentos infligidos a um homem malfadado por representantes odiosos e ameaçadores da treva exterior” (LOVECRAFT, 1987, p.43).
Peça fundamental para a narrativa fantástica é a existência de Edgar Allan Poe, que instala uma “aurora literária” (LOVECRAFT, 1987, p.47) na década de 1830, por meio de sua produção. Lovecraft dedica um capítulo inteiro de seu ensaio a Poe, pois acredita que o escritor norte-americano tenha feito o que até então ninguém fizera ou seria capaz de fazer; desse modo, seria o responsável por instituir a moderna história de horror. Afirma o ensaísta que Poe estudou mais a mente humana do que os usos da ficção gótica e, além disso, trabalhou com as verdadeiras fontes do terror, o que tornou mais fortes suas narrativas e retirou da escola gótica a mera função de “confecção convencional de calafrios” (LOVECRAFT, 1987, p.49).
Ao passo que Poe representa a escola fantástica mais tecnicamente acabada, outro famoso escritor americano, Nathaniel Hawthorne, desponta, à mesma época, fundando outra escola com características diversas: “a tradição de valores morais, descrição amena e fantasia mansa e pachorrenta com toques de extravagância” (LOVECRAFT, 1987, p.56). De acordo com Lovecraft, em sua obra, as menções ao fantástico são sempre leves, fugidias e contidas. Hawthorne não deixou uma posteridade literária definida, ao contrário de Poe, que teve no irlandês Fitz-James O’Brien seu primeiro discípulo, seguido de Ambrose Bierce e de outros tantos, como Henry James ou Edward Lucas White, influenciados de alguma maneira por Poe.
No que tange às Ilhas Britânicas, Lovecraft cita e comenta os autores Rudyard Kipling, Lafcadio Hearn, Oscar Wilde, Matthew Phipps Shiel até chegar ao conhecido Bram Stocker, criador de Drácula, que se tornou praticamente o “padrão moderno na exploração do medonho mito dos vampiros” (1987, p.75) e que influenciou diversas produções posteriores.
As melhores histórias de horror do tempo em que Lovecraft redige seu ensaio, isto é, entre o final da década de 1920 e o início da de 1930, são, para ele, infinitamente mais dotadas de técnica e de conhecimento psicológico do que qualquer das amostras góticas de um século ou mais atrás. Nesse contexto, menciona Arthur Machen, Blackwood, Lord Dunsay e Montague Rhodes James como mestres do conto de horror moderno e diz que o gênero continuará existindo, embora se possa esperar uma maior sutilização de técnicas.
Em estudo posterior, publicado pela primeira vez em 1970, sob o título Introdução à literatura fantástica, Tzvetan Todorov (1975) ocupa-se especialmente da literatura fantástica, levantando questões sobre sua definição, suas formas e temas. O teórico define finalmente o fantástico como um evento em que há incerteza acerca de sua realidade; o evento ocorre no nosso mundo, mas parece ser sobrenatural, daí a hesitação por ele causada. Afirma ele:
O fantástico implica [...] uma integração do leitor no mundo das personagens; define-se pela percepção ambígua que tem o próprio leitor dos acontecimentos narrados [...]. A percepção desse leitor implícito está inscrita no texto com a mesma precisão com que o estão os movimentos das personagens (1975, p.37).
O fantástico consiste, para o estudioso, apenas no momento da hesitação da personagem ou do leitor. Ao fim da história, quando um ou outro decide se são as leis da realidade ou as do sobrenatural que regem o acontecimento narrado, define-se também um novo gênero ao qual se liga a obra: o estranho ou o maravilhoso. O estranho dá-se quando o sobrenatural é racionalmente explicado.
Nas obras que pertencem a este gênero, relatam-se acontecimentos que podem perfeitamente ser explicados pelas leis da razão, mas que são, de uma maneira ou de outra, incríveis, extraordinários, insólitos e que, por esta razão, provocam na personagem e no leitor reação semelhante àquela que os textos fantásticos nos tornaram familiar (TODOROV, 1975., p.53).
O conceito é, de acordo com Todorov, amplo e impreciso, pois também assim é o gênero que ele descreve. A pura literatura de horror pertenceria ao estranho. Já o maravilhoso é designado como sobrenatural aceito, pois não recebe explicações. Nele existem fatos sobrenaturais que não implicam reações particulares das personagens, nem mesmo do leitor implícito. O estudioso acrescenta ainda: “não é uma atitude para com os acontecimentos narrados que caracteriza o maravilhoso, mas a própria natureza desses acontecimentos” (1975, p.60). Ao gênero maravilhoso associam-se geralmente os contos de fada.
Em ambos os casos, não há o fantástico. Explica Todorov: “não existe aí o fantástico propriamente dito: somente gêneros que lhe são vizinhos. Mais exatamente, o efeito fantástico de fato se produz mas somente durante uma parte da leitura” (1975, p.48). No entanto, é falso pensar que o fantástico possa ocorrer somente em um trecho da obra, visto que existem textos capazes de manter a ambiguidade até seu final e além. Em obras que “mantêm por muito tempo a hesitação fantástica mas terminam enfim no maravilhoso ou no estranho” (TODOROV, 1975, p.50), os gêneros misturam-se e criam subgêneros transitórios, denominados fantástico estranho e fantástico maravilhoso. O fantástico estranho consistiria na apresentação de eventos sobrenaturais ao longo da história e em sua explicação racional, ao final de tudo. O fantástico maravilhoso, por sua vez, englobaria as narrativas que terminam com uma aceitação do sobrenatural e, portanto, sem explicação, motivo pelo qual se aproximam do fantástico puro.

Apresentados os apontamentos fundamentais de Lovecraft e Todorov acerca dessa literatura do medo – chamada por alguns de extraordinária, de fantástica ou de literatura de horror, sobrenatural por outros –, salienta-se a necessidade de mais estudos referentes a gênero, dada sua ocorrência na literatura e em ou produtos culturais, bem como sua permanência, desde tempos primordiais e o fascínio que exerce em leitores, ouvintes e espectadores de todas as idades. A tentativa de constituir uma rede temática em torno do assunto proposto pretende, portanto, auxiliar na elucidação de questões como a classificação conferida a esse tipo de narrativa, suas origens e características.

Referências bibliográficas
GOTLIB, Nádia Battela. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 1999, 9ª ed.
LAJOLO, Marisa. A narrativa na literatura para crianças e jovens. In: BRASIL. Ministério da Educação. A narrativa na literatura para crianças e jovens. Boletim 19, outubro 2005. Secretaria da Educação Básica, p.5-8.
LOVECRAFT, Howard Phillips. O horror sobrenatural na literatura. Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, 1987.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975.
[1] Mestre em Teoria da Literatura pela PUCRS (2009) e graduada em Letras pela UNISINOS (2006). Endereço para contato: gabrielahlopes@yahoo.com.br



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